Como Era Antigamente
Por: Jofre de Lima Monteiro Alves
O Natal começava quando os mais velhos do agregado familiar incumbiam a pequenada, de olho fino, da ida à bouça na procura de matéria-prima a fim de ser construído o presépio.
Eis o ansiado pontapé de saída para uma áurea festiva. Trazia-se musgo às postas, pedrinhas talhadas a foice, pinhas ao sacolejo e um pinheirinho, ou ramada de pinheiro, que a época não era soberba de desperdícios e consumos de espavento.
Num canto predefinido da casa, construía-se uma autêntica aldeia em miniatura, povoada de figurinhas, a gruta, o menino conchegado nas palhinhas, debaixo do bafo do burro e da vaca ramalhuda.
Um empreendimento de monta e de quantas criaturas cabiam no imaginário que abraçava o Mundo, onde não faltavam os terríveis herodes da matança, os pastores e os Reis Magos a peregrinar pelo nosso presépio adentro, tal como nos trilhos de Ceca e Meca.
Na antevéspera, a 23 de Dezembro, a tradição alto-minhota exigia de lei a visita ao cemitério, romagem de saudade aos entes queridos falecidos, na crença que os nossos maiores, os antepassados, iriam estar em espírito na Consoada.
Na mesa, a matriarca colocava a luzidia toalha de linho, uma preciosidade herdada dos avoengos, de par com a melhor loiça e talheres de “ver a Deus” usados quando o rei fazia anos e nas ocasiões especiais, o resto do tempo sempre aferrolhados como um tesouro moiro nas profundezas da arca.
Enfeites de sala, composto por ramos de azevinho davam um ar folião e convidativo à austera habitação. Venha o resto, a comidinha, que era de supina importância, e capaz de saciar a fome de lobo esfaimado.
O bacalhau “do alto” tinha – e ainda tem – o estatuto de rei e presença insubstituível na Consoada, acompanhado de batatas e couve penca curtida da geada. Devidamente banhado de azeite de estalo para nele molhar o pão, manjar dos deuses, como se fazia antes da Europa nos afiançar que era um tudo-nada anti-higiénico e boçal.
Nas casas de maior basteza, onde a folgança permitia fazer de boi tendo tão-só pata de carneiro, havia o segundo prato, o polvo seco cozido, ou arroz de polvo como confeccionava a minha santa mãezinha – a avó, como dizíamos antigamente no Minho –, comprado na feira de Paredes de Coura.
Isto, substancialmente bem regado com o tradicional “Vinho Quente”, uma saborosa mistela de verde tinto fervido com gemas, melaço, canela e, nas casas mais abastadas, apaparicado com uma porção de “vinho fino” – como naquelas eras se chamava ao vinho do Porto ou Moscatel.
De fazer cantar os anjos lá na corte celestial, para os mais velhos, claro, que a canalha pequena bebia pirolitos.
Compunha a mesa o arroz-doce e as rabanadas minhotas, umas bêbedas em calda de vinho, mel e canela, outras fidalgas, ou as simples fatias-de-paridas polvilhadas de açúcar.
E demais iguarias dispersas a preceito, figos, passas, pinhões e nozes. Pitéus dignos dum faraó, comparada com a pobreza franciscana e frugalidade do restante ano, mesmo para os lavradores abastados. Corria o vinho do melhor pipo, de pintar as malgas com as mais vivas cores da folia e comes e bebes de príncipe.
Nas horas mortas que antecediam a Missa do Galo, à volta da lareira onde o “Canhoto de Natal” tinha a sacrossanta missão de arder toda a noite, brincava-se seriamente ao “rapa-tira-deixa e põe”, um jogo de pinhões, enquanto os adultos jogavam às cartas, ou recordavam os familiares e historietas de levantar os cabelos.
A função de escolher o madeiro de carvalho para a lareira cabia ao pai e filho mais velho. Diziam as minhas santas avós, naquela sabedoria popular e milenar, que o fumo e as cinzas do “Canhoto de Natal” tinham a utilidade miraculosa de afastar as faíscas e trovoadas, um pára-raios campestre, além de propriedades terapêuticas aplicadas em certas doenças, mas para tal ocorrer deveria arder da Consoada ao Dia do Ano Novo.
O poviléu atravessava a aldeia em direitura à igreja matriz para ouvir a vigília jubilosa da meia-noite e beijar a imagem do Deus Menino, quebrantando a escuridão cerrada dos caminhos com umas lumieiras feitas de palhas ou lampiões de azeite que abriam uma trémula claridade na treva de breu.
A mesa, com os seus restos alimentares, não podia ser levantada sob pretexto algum, repousava farta toda a noite para alimentar e aquecer as alminhas, que no entender douto dos avós, ali vinham saciar-se a contracompasso, enquanto a família curava o sono.
Na ressaca da festança, manhã seguinte, a criançada acordava com as galinhas, mal rompia a madrugada, para saltear a lareira onde jaziam as prendas, modestas se comparadas com o pretensiosismo actual, porém inegavelmente mais valiosas naquela época de privação e vacas magríssimas, num tempo em que o Pai Natal não entrava pelas chaminés do Minho e os presentes eram trazidos pelo Menino Jesus.
No pinheiro, a fazer crescer baba na boca como água-benta, alguns chocolates – do chocolate preto de Viana – mercados na feira de Padornelo e pendurados por cordel faziam esbugalhar o desejo para além do limite da gula.
Ao almoço do dia 25 de Dezembro – que naquele torrão de tranquilidade se chamava então jantar –, comia-se a “roupa velha”, uma delícia que ainda hoje adoro, feita com as sobras da lauta consoada.
Para compor o prato principal da janta, a Ceia de Natal, matava-se o melhor galo da capoeira, acompanhado de arroz de pica no chão e chouriço de carne, um manjar que murmurava pelo mais cândido estômago.
Apesar da ventania de mudança que varre o limbo da sociedade, ainda perduram algumas destas resistentes tradições vindas dos confins da memória dos tempos.
Desapareceu por completo a Missa do Galo, o Menino Jesus foi substituído pelo amorfo Pai Natal (parece que vem aí uma sexuada Mãe Natal...), o presépio em estado de paralisia peleja com a Árvore de Natal, o Vinho Quente descaiu no esquecimento do paladar, o Canhoto de Natal foi trocado pelos aquecedores, e até as próprias prendas são entregues na noite de 24 de Dezembro, à revelia dos preceitos do uso antigo.
Foram introduzidos o bolo-rei e mais gulodices, o horrendo peru e outras modernices importadas a mata-cavalos e contranatura.
Agora comprámos num hipermercado um falso conceito de felicidade às toneladas ao consumir em quantidades astronómicas todo o género de inutilidades.
O Natal no Minho rural de antanho, festim mais comedido e frugal, embora fosse uma festa por excelência, não tinha a euforia consumista e pantagruélica de agora.
Mas era, acima de tudo, um tempo alumiado de felicidade divinal, onde a alma coexistia com o estômago, numa ternura florescente. E que saudades tenho desse tempo e dessa ventura...
Mas desta ou daquela maneira, continua a ser a festa de harmonia. A Consoada e Ceia de Natal tinham algo de mítico, sublinhado pelo simbolismo duma sentida paz caseira. Marcava o epicentro da festa familiar, na plenitude das suas tradições e manifestação intensa de alegria íntima.