RECORDA O ÚLTIMO DOS FERREIROS DE PADORNELO
"Dantes o trabalho era muito, mas alguns não pagavam e outros pagavam-nos com ovos"
O NC tem vindo a realizar uma série de entrevistas com pessoas cuja profissão se extinguiu ou está prestes a extinguir-se. Nessa linha da evocação de profissões do “século passado”, chegou a vez do ferreiro.
Fomos assim bater à porta de Domingos da Conceição Fernandes, um dos sobreviventes da conhecida e estimada família dos ferreiros de Padornelo, os “Traias”. Solteiro, de 75 anos de idade, Domingos reside na humilde casa do Lugar dos Tojais que foi pertença e habitação de seus avós e pais, António Fernandes e Aurora da Conceição Fernandes.
De aspecto físico irrepreensível e bem-disposto, o ferreiro recebeu-nos com a educação e satisfação que é apanágio das pessoas humildes, abrindo-nos a porta de sua casa, na qual ainda sobrevivem as memórias da forja que trabalhou incessantemente décadas e décadas a fio. Domingos fez mesmo questão de mostrar-nos o que resta da velha oficina, em parte da sua casa.
Descreva-nos um pouco da sua vida como ferreiro e fale-nos das dificuldades com que foi criado, num tempo em que grande parte das gentes das nossas aldeias convivia diariamente com a mais absoluta miséria.
Éramos nove irmãos, todos sem saber ler nem escrever. Só eu e uma irmã é que ainda estamos vivos. Os irmãos mais velhos, tínhamos de trabalhar para o sustento dos mais novos, por isso, escola nem pensar! Trabalhávamos desde madrugada até altas horas da noite, ou seja de madrugada até de madrugada. Manhã muito cedo já os lavradores acorriam à oficina a fim de serem atendidos. Afiar ‘foicinhas’, ‘carbunhar’ enxadas, aguçar os picos para os homens cortarem a pedra, arranjar e construir machadas, ferragens para os carros de vaca eram alguns dos trabalhos que nos encomendavam.
Onde funcionava a vossa oficina, lá pelos anos quarenta e cinquenta do século passado?
No Lugar de Sigo, logo ali abaixo do rio. Tínhamos uma forja, serração de madeiras (um engenho) e moinhos para moer o grão de milho e outros cereais. Havia muito movimento naquele tempo, e como havia gente por todo o lado e muita alegria, as pessoas até se esqueciam da miséria e da fome que passavam. Era tudo gente muito séria e honrada. Nascemos pobres e vivemos pobres. Naquele tempo não havia dinheiro, lembro-me perfeitamente que algumas pessoas nos pagavam os trabalhos com ovos, outras não pagavam nada. Só no Lugar dos Tojais havia quatro mercearias, barbeiros, carpinteiros, moleiros, ferreiros, sapateiros, a padaria das padecas; moravam aqui padres, professores e viscondes. Nem é bom lembrar, porque hoje não há pessoas, que pena tenho daqueles tempos! Tudo acabou, hoje apenas existe a mercearia do filho do Guilherme, um salão de cabeleireira e o Lar de Idosos.
Como ocupa hoje o seu tempo?
Durmo até tarde, como a refeição que me vem do Lar, depois boto uma sesta. Mais tarde vou até à casa do meu sobrinho, assim vou queimando o tempo… quando noutros tempos era o tempo que me queimava a mim. Mas, claro, hoje a vida é muito melhor do que nos tempos atrasados. Nunca fui de muitas conversas, ainda vou fazendo umas pequenas peças de artesanato, que vou vender todos os anos à feira da mostra, à vila.
Explique-nos o que era isso de dar a têmpera e caldear as ferramentas.
Olhe, naquele tempo nada se perdia. Os lavradores já compravam as enxadas de cavar a terra conhecidas pelos seus tamanhos, de 1 a 4 libras. Dada a sua qualidade e duração, as melhores vinham de Espanha, marca ‘Bolota’. Depois de gastas, nós fazíamos umas mais pequenas ou mesmo delas fazíamos outras peças de ferramentas, ‘foicinhos’, sachos para o milho, nada se podia perder. A chamada têmpera era o segredo do negócio e do artista, poucos sabiam dar essa têmpera. Caldear era juntar as peças com pasta a que chamávamos o casamento perfeito. Caldeava, malhava e por fim a tal têmpera, que se dava no depósito de água que tínhamos na forja. Havia a têmpera branca e a têmpera azul, quer dizer, ao introduzir as peças na água, ainda vermelhas do lume, havia que saber como fazer. Por fim, as peças ainda quentes eram besuntadas com corno de carneiro.
José Cunha
NOTÍCIAS DE COURA, edição n.º 184, 24 de Maio de 2011, p. 45.
http://www.noticiasdecoura.com/index.php?pag=noticia_detalhes&recordID=4658