PARA A HISTÓRIA DA FEIRA EM PAREDES DE COURA E PADORNELO
Por: Jofre de Lima Monteiro Alves
Quando nasceu a feira de Coura? Não temos a resposta definitiva, mas no início do século XVI o Rei Dom Manuel I concedeu autorização ao Visconde de Vila Nova de Cerveira, senhor donatário da Terra de Fraião e do concelho de Coura, para este nomear fiscais para a “feira de Coira”. Isto significa que a mesma já se realizava, provavelmente desde os tempos de antanho.
Tendo inicialmente a periodicidade mensal, realizava-se a cada dia 9, mas passou a quinzenal por força do alvará régio de Dom Pedro II, datado de 8 de Novembro de 1689, sendo fixadas as datas de 9 e 24 de cada mês para a sua realização.
Todavia, os povos de Coura, impelidos pelos sujeitos de negócios, queriam mais, e para tal alcançaram do Rei Dom João V a autorização para se levantar nova feira no lugar de S. Roque, na freguesia de Rubiães, por mercê de 20 de Janeiro de 1712, a qual seria transferida posteriormente para o Cascalhal, lugar da freguesia de Romarigães, por carta régia do mesmo monarca, lavrada na Chancelaria a 19 de Fevereiro de 1726. Teve, porém, vida breve.
O espaço feirante nesta zona concelhia nascera sobre triste signo, problemática a existência que levou a constantes supressões e reactivações inúmeras vezes. Não houve fabulário milagreiro que lhe desse bom caminho, vagueando num babaréu façanhudo bafejado pelos foles do inferno, como veremos mais adiante.
No reinado de Dona Maria II seria criado outro mercado, este de reminiscência e tradição mais perdurável até aos meados do século XX. Por graça da carta régia de 16 de Julho de 1792, os administradores da Real Confraria e Santuário do Senhor Ecce Homo, os moradores de Padornelo e demais povo do concelho de Coura foram autorizados a realizarem uma nova feira naquela freguesia.
Na petição, a bater à porta da estância soberana, naquele português macarrónico da centúria de setecentos, alegavam com o coração aos saltos que «tinham desejo e necessidade de que naquele sítio que estabelecessem algumas feiras», pois o foral manuelino previa a existência e a «faculdade para duas» no espaço concelhio.
Numa retórica melodramática, carregada de tintas negras a fim de inspirar a magna piedade da rainha, alegavam que «muitas vezes» não se realizava a feira de Paredes «por causa das chuvas e inundações, por ser no Inverno», o que causava «comum prejuízo» e fazia aquele «Povo viver em indigência por falta de negociações e estarem distância de três léguas os termos mais circunvizinhos».
Ao mesmo tempo, condoídos de dores e penúrias, como causa maior acrescentavam o facto «ter esfriado a devoção e ocorrência a que costumava haver de muitas partes ao dito Santuário» do Senhor Ecce Homo, que entrava, assim, em estado de calamitosa decadência, o que não convinha ao serviço de Deus. Parece, a fazer fé, que antes acudia povo dos quatro cantos.
Assim, para melhor abastecimento dos povos, escoar a produção agrícola, renovar a grandeza da Real Capela e por coisas e loisas, naquela letra miudinha e pressurosa, pediam a graça real de ser criada «uma feira no primeiro dia de cada mês e uma a vinte e seis e vinte e sete do mês de Julho de cada ano, todas no Terreiro do dito Santuário». Com se disse, foi despachado favoravelmente por provisão régia de 16 de Julho de 1792. Naquelas eras recuadas, os reis e governantes ainda queriam o bem explícito dos povos.
Atraiu a rédea dos almocreves e tornou-se um entreloiço de festim. Teve vasta duração e era afamada como feira de predilecção especial para gado, cereais, hortaliças e não faltava de premeio a boroa de truz. Ocupava o rossio vizinho à Capela do Senhor Ecce Homo, nos Tojais, lugar da freguesia de Padornelo, classificada como «a segunda, em importância, do concelho» na ordem natural da grandeza, sólida e cumpridora dum destino benigno. Pedia meças a muitas feiras do Alto Minho.
Durante o século XIX e primeiro terço da centúria de 1900 ganhou fama e proveito de ser «boa para gados, e acorrem a ela cereais, hortaliças, peixe fresco e salgado, galinhas ovos, frutas», e, em contraponto, nunca teve tenda para venda de ourivesaria. Os negociantes elegiam a Feira dos Tojais como lugar de eleição, corria a fama de feirão porque o terreno inclinado e os ares favoráveis acentuavam as condições ideias, «o gado feirava bem» e tudo encaminhava para preços competitivos e razoáveis.
Em Junho de 1958, devido a uma epidemia de febre aftosa malina, foram «proibidas as feiras dos animais em todo o distrito de Viana», o que causou «um grande prejuízo, não só aos lavradores, assim como a todos em geral, pela falta de transações». Tal facto, um agravo infligido que se prolongou em demasia, arruinou a pujança da praça mercantil de Padornelo, que não conseguiu sobrevir sem a sua componente de Feira do Gado, dando ainda a última demão do estertor em finais de 1958.
O povo de claro engenho, olho fino e afeiçoado às coisas do labirinto sobrenatural, que nunca foi gente de meias tintas, prefere atribuir a morte da feira a uma maldição que teve origem no facto de se ter cortado o adro do Senhor Ecce Homo para a construção duma estrada, desviada de propósito para não entrar em terrenos duma senhora de estadão e etiqueta. A ser assim, os espectros acusadores pesaram imenso na balança da justiça divina.
Extinguiu-se naturalmente no início da década de 1960, depois de uma curtíssima tentativa de a fazer renascer, após 170 anos de actividade. A Feira dos Tojais ou Feira de Padornelo é, coração ao largo, uma saudosa referência, a engrossar a memória cristalina, que os acidentes históricos e sociais empurram com recalcos de inteligência para os gélidos campos sem regresso.
Como entretanto desaparecera a Feira do Cascalhal, foi fundada uma nova no intuito de substituí-la, desta feita no lugar de Antas, freguesia de Rubiães, por provisão de 1831 do Rei Dom Miguel I. Votada ao insucesso, ou por ser considerada nefasta obra do absolutismo, escassos seis anos depois seria extinta pelo Governo Liberal, «por ser prejudicial», conforme menciona a portaria de 11 Maio de 1837 da Rainha Dona Maria II, e, quiçá, um despautério absurdo.
A própria Câmara Municipal de Coura, de sobrolho carregado e a chapinhar odioso sobre os feirantes, solicitara a sua extinção por rogo de 9 de Abril de 1837, porquanto arguia que na Feira de Antas «se praticavam nelas muitos furtos e constantes desordens», apontada a dedo de todas as velhacarias. Grassava a desordem, espectáculo desmoralizador, pois a cada passo irrompiam rixas desvairadas e batalhas campais de monda, corria sangue como num regato de inverno, mesmo nos dias mansos.
A plebe ofereceu instintiva, mas melindrosa, resistência sem lhe amolecer a alma, tendo, por isso, o Governo Civil do Distrito de Viana do Castelo reforçado a ordem de extinção em Junho do mesmo ano, por questões de lana-caprina e artilhado de toda a jurisprudência.
De quando em quando, o poviléu assentava arraiais por ali, assobiava para o lado e reactivava clandestinamente a Feira de Antas, armando as tendas à revelia dos poderes instituídos, de modo obstinado, enquanto fazia escolta aos canjirões de vinhaça e caldo-verde divinais, por não querer tão-pouco acatar o capricho das autoridades.
Em 1846 ocorreram ali graves distúrbios durante a Patuleia, apesar da Câmara Municipal de Coura agravar posturas nas quais determinava a multa de 1$000 réis aos feirantes e usuários da Feira de Antas. Os tempos eram turvos, como turbada a água do tanque do Inferno, ameaçava terra e céu.
Para impor a liquidação definitiva e a ordem da lei, o Governo Civil de Viana do Castelo enviou em 1847 uma coluna militar de Valença armada até os dentes, ocupou o sítio com manápula de ferro, enquanto a edilidade aumentava a coima aos transgressores para 2$000 réis e outros gravames a enterrar a unha na fazenda. A feira morreu, então, sacrificada no altar da força, perante a populaça de olhos rasos de lágrimas, atrita e gemebunda.
Contudo a edilidade, por caminhos ínvios, decidiu reactivar a desaparecida Feira de Antas, desta feita no lugar da Chã, freguesia de Rubiães, erecta agora por decisão do presidente José Brandão Pereira de Castro a 10 de Novembro de 1859. Acto administrativo que não foi sancionado pela Junta Geral do Distrito de Viana.
Mas como aquilo que torto nasce, torto vegeta, a feira foi transferida aos trambolhões por motivos operacionais para junto da Capela do Senhor do Amparo, freguesia de Linhares, onde, pese embora a promessa duma bênção celestial mais protectora, também não prosperou e cresciam as ervas ruins para além da medida. Logicamente, foi abolida por alvará do Governo Civil de 5 de Outubro de 1875, por proposta emanada da edilidade courense em 1873. A feira deste lado das brenhas do concelho andou, sempre, de Ceca em Meca com a tenda às costas.
Entretanto, o campo da feira do gado, em Paredes de Coura, repimpado de eira nova, foi inaugurado a 9 de Janeiro de 1884, onde permaneceu até a introdução de novas regras que levaram à sua extinção em data recente. Por isso mesmo, deu origem ao topónimo popular, ainda persistente, que designa aquela área por “Largo da Feira do Gado”, à revelia da denominação oficial que lembra uma data penosa.
A 24 de Agosto do mesmo ano os espaços denominados “feira dos cereais” e “feira das mulheres”, hoje unificados no Largo de Hintze Ribeiro, foram oficialmente inaugurados. As obras de beneficiação e o chafariz são da lavra do mestre José Joaquim Guerreiro, de Lanhelas.
Em ambas as ocasiões era presidente da autarquia o Comendador Miguel Dantas, que aliás, foi quem idealizou esta renovação da feira, e negociou a respectiva expropriação de terrenos com António Pereira da Cunha, Senhor da “Casa Grande”, a cuja quinta fidalga pertencia a maioria dos campos onde depois de instalaram os novos recintos.
A autarquia, por resolução emanada a 23 de Janeiro de 1897, e sugestão do seu presidente, o dr. José Maria Nogueira, filho do falecido Visconde de Mozelos, deliberou alterar as datas da realização das feiras concelhias, transferindo-se para os sábados, alternados quinzenalmente, que deu origem aos famosos «sábados de Paredes» e «sábados dos Tojais», conforme decorriam as feiras na vila ou em Padornelo.
Entretanto, aquele nado-morto era teimosamente ressuscitado, pois a 20 de Dezembro de 1906 a Câmara Municipal de Paredes de Coura, sob proposta do vice-presidente José António Martins, restabeleceu a Feira de Antas, na freguesia de Rubiães, nas segundas-feiras imediatas à de Paredes de Coura.
Como pela proximidade de ambas era nefasta e não trazia qualquer benefício, foi a mesma transferida a 26 de Dezembro de 1908 para o domingo seguinte à de Padornelo, mas pouco proveito lhe trouxe tal mudança.
A 12 de Março de 1913 foi a dita Feira de Antas deslocada, agora para o espaço adjacente à Capela de S. Bento da Porta Aberta, na freguesia de Cossourado. Mas pouco subsistiu aí, tudo é finito, tudo é efémero. Seria extinta definitivamente, sem provento, nem lembrança e rebate. Nascera tolhiça e prenha de vida negra.
O mercado municipal tem um relambório mais modesto e minguado. Já existia há algum tempo quando o presidente da Câmara Municipal de Coura, Miguel de Antas Bacelar e Barbosa, fidalgo de costados e sangue azul, a 11 de Outubro de 1834 determinou mandar reconstruir o antigo alpendre de madeira onde funcionava a praça, situado no terreiro público fronteira aos antigos Paços do Concelho, a fim de nele serem vendidos os géneros alimentícios de primeira necessidade.
Mas o espaço devia estar deveras decadentes e degradado, porquanto a municipalidade solicitou ao Governo da Nação a devida autorização para levantar uma nova área destinada ao mercado semanal, numa petição assinada a 15 de Julho de 1876 pelo presidente Comendador José Luís Nogueira, mais tarde ornado com o título de Visconde de Mozelos.
Foi posteriormente demolido para ser substituído por uma nova praça, inaugurada a 23 de Dezembro de 1892, por decisão do Conselheiro Miguel Dantas, patrono dos voejos para romper noções concretas de civilização neste sertão, com providência autorizada.
Sobre os recentes padecimentos e tratos de polé submetidos à Feira de Paredes, com a transferência para uma cova funda e outros dislates, nem vale a pena esgrimir risinhos e trejeitos, pese embora os tempos modernos não estarem para estas mercancias, foi erro de monta e estoira-vergas. Um absurdo inconcebível, que convém rectificar e fazê-la regressar ao local de origem!
Março de 2006