UMA OBRA-PRIMA DUM ARTISTA DE PADORNELO
Desde o final do século XIX que o cangalho tende a substituir e até destronar a canga, que foi progressivamente deixada de lado devido ao seu alto custo, mas também por causa da sua elevada estatura, que muito contribuía para desequilibrar o conjunto e pelo inconveniente de baterem nas ramadas mais baixas, ficando os animais cheios de suor nas veredas pedregosas.
Posta quase de lado devido ao seu acelerado desuso, a canga foi substituída pelo cangalho, mais baixo, tomando até a mesma designação comum, aplicada assim aos dois artefactos, que eram muito distintos antigamente. Tudo passou a ser canga, até aquela trave que os poderosos querem botar no cachaço do poviléu.
Existem dois tipos de cangalhos, o de varanda inteira e o de meia-varanda. O primeiro, o cangalho de varanda inteira é um pouco maior que o seu congénere e apresenta a parte superior toda recta, enquanto o cangalho de meia-varanda apresenta um rebaixamento lateral, e até uma ornamentação menor ou quase nula.
Um extraordinário cangalho de varanda inteira foi desenhado e talhado pelo génio artístico do meu avô António Inocêncio Alves em 1958, naquele cantinho que já foi um paraíso terrestre da freguesia de Padornelo e do concelho de Paredes de Coura, nos alvores dos dias alegres: Porto de Várzea de Além do Rio.
Destaco o friso superior, os vazados ornamentais, a cruz do meio em estilo florenciado e vazia – a fim de repelir o mau-olhado –, as flores estilizadas, as margaças-do-campo, os motivos fitomórficos e os maciços entalhes e chanfres, tudo esculpido a formão, palhete e goiva, com mestria sublime, para deleite dos nossos olhos e alma. Um verdadeiro sentido da construção, pureza e precisão de traço.
Nota-se a ausência dos “camalhões” – a extremidade inferior mais prolongada – a “deitada” – a parte encurvada, ao meio, na porção inferior – e das “piarças” – que reforçam as extremidades laterais dos camalhões, que são, precisamente, as características essenciais do cangalho.
Contudo o conjunto é duma beleza notável, atingindo um patamar de absoluta perfeição estética, dotado de raro talento, com traços a realçar as formas. Todos os trabalhos que António Inocêncio levou a peito, foram sempre magistrais obras-primas, como artista de raros méritos e intensa criação artística, mercê da magia das suas mãos, sempre avesso ao arruido público, debruçado sozinho sobre a sua banca, apegado e apagado na sua oficina, um silêncio que tanto o comprazia.