UM COSTUME ANTIGO DO MINHO: Casamento e Choro
Por: Jofre de Lima Monteiro Alves
O casamento e a mortalha no céu se talha.
No século XVI, em tempo do Rei Dom João III, existia ainda pujante um antiquíssimo costume sobrevindo dos fundos das eras dos netos de Noé, hoje completamente abandonado e ignorado. No dia do noivado oficial, as mulheres da parentela e da vizinhança organizavam uma fiada a que chamavam serão da noiva. Todas juntas fiavam a noite inteira, desde o sol-pôr até raiar a luz da matina, contribuindo numa palhetada para fazer o enxoval e bragal da prometida, a bichanar segredos de alcova, o diafragma a arfar de tanto espírito-santo-de-orelha e riso alarve.
Cravo vermelho ao peito
É sinal de casamento;
Menina recolha o cravo,
Pra casar inda tem tempo.
Por sua vez a moçoila casadoira, na manhã do seu casamento, recusava terminantemente abandonar a habitação paterna, resistindo com contumácia ao máximo, aqui d'el-rei, «daqui não saio, daqui ninguém me tira». Depois de determinada resistência, choradeira infinita e partes-gagas da noiva, a fazer finca-pé, os irmãos, primos e tais e tais da parentela da contraente botavam-lhe a gadanha e acabavam por arrastá-la à viva força porta fora da casa paterna, por entre alta grita da futura esposa e pranto da mãe, ai-jesus.
Minha mãe, o que é casar? Sofrer, parir e fiar!
Outrossim, desta forma a maridada amostrava o quanto amava os pais. Mas acima de tudo demonstrava que tão-somente saía de casa a toque de caixa, contra a sua vontade e forçada por força bruta de braços másculos. Após este escarcéu todo, enfim rendida, a nubente trémula das pernas ajoelhava e beijava a mão do pai.
Minha mãe case-me cedo,
Enquanto sou rapariga;
O milho sachado tarde
Não dá palha nem espiga.
Organizavam de seguida uma escolta de janízaros com a famelga e dois compadres a custodiar a renitente moçoila na trilha do altar, trupe que trupe, rompiam a tanger todos os campanários. A abrir caminho da comitiva nupcial seguia um rapazola, irmão da pretendida, que transportava a roca e o fuso, símbolo do trabalho doméstico e das canseiras que ela desditosa carregava para a sua nova casa, carrego mais pesado que os montes Hermínios.
Em casamento e mortório, sempre há falatório.
Defronte do templo, no exterior (in facie ecclesiae, no sentido literal), procedia-se a uma série de ritos tradicionais de esponsais em presença das testemunhas, tais como a troca de consentimento mútuo entre os esposos, a assinatura e a entrega do dote. A noiva era então entregue pelos seus pais ao noivo. O sacerdote passava o anel ao noivo que, por sua vez, introduzia a aliança no dedo anelar da mão enluvada da desposada, símbolo da pureza, enquanto o futuro esposo lhe dava uma moeda de ouro, dizendo ao mesmo tempo: «com este anel te esposo, com este ouro te honro e com este dote te doto».
Minha mãe vou-me casar,
Sou filha de matrimónio;
Já tenho as unhas rompidas
De arranhar este demónio!
Entrementes, a meio da missa de casamento, os nubentes deitavam-se acamados no chão, ao comprido e eram tapados com um lençol, acto que expressava a união carnal do casal[1]. Durante duzentos anos entre os séculos XVI e XVIII, o desposório era celebrado à porta da igreja, em especial ao sábado e sabemos de fonte segura que se atirava trigo para cima dos recém-casados. E claro, como é óbvio, não existia qualquer tipo de vestido branco de noiva, porquanto os noivos vestiam tão-somente as suas melhores roupas, em geral azuis ou vermelhas, e as mulheres, acatando uma antiga tradição milenar, levavam um véu na cabeça.
Antes que te cases vê o que fazes!
Para assinalar a boda, nesta altura da centúria de quinhentos, o padrinho e o marido atiravam ao ar uma mancheia de confeitos, que o rapazio lambão e monco de palmo disputava à rebatinha, em porfia de muitos encontrões e força de unha. Feito o casório e responso matrimonial, marido, mulher e o respectivo préstito retrocediam ao lar de volta da igreja por atalho diverso, pois é de mau agoiro trilhar o trajecto anterior, rescendia a bafo de belzebu. Nessa tarde do enlace, fazia-se um baile de terreiro de quatro assobios, meneavam o saricoté como o santo rei David a bailar diante da Arca da Aliança e, avessos a pompas e fidalguias, engoliam uma janta melhorada.
Enquanto fui solteirinha
Dormia sem ter cuidado;
Agora que sou casada
Passo noites no sobrado.
Aqui vai, ipsis verbis em letra macarrónica da centúria de oitocentos, o artigo que narra este velhíssimo costume, ora varrido pela lima do tempo para o limbo do esquecimento e que se praticava ainda em Ponte de Lima e em Coura, altar da natureza, no século XVII:
«Usos Antigos nos Casamentos de Portugal
Nos casamentos usavão as antigas mulheres portuguezas, principalmente as da provincia do Minho, não sahirem da casa de seus paes para a de seus esposos, senão como violentadas: os seus parentes fazião a ceremonia de puxarem por ella para fóra da porta arrebatadamente, e indo no meio de dois padrinhos, adiantava-se a toda a comitiva hum moço, que levava a roca cheia de linho, e o fuso.
No tempo de João de Barros, que floreceo pelos annos de 1549, ainda permanecia quasi geral este costume; porque a noiva, quando sahia da casa de seus pais, diz elle na discripção do Minho, chorava muito, dando assim a entender saudosa, que se apartava da sua companhia contra vontade.
Tambem costumavão, quando sabião que alguma moça estava contratada para casar, juntarem-se as visinhas e parentas della, e fiarem todas á porfia huma noite até pela manhãa, a que chamavão o serão da noiva, e assim chegavão a fiar muitas varas de panno para seu enxoval. Desta sorte ajudavão huns aos outros para o dote das filhas, e no dia da boda fizião grandes festas e banquetes».
Usos Antigos nos Casamentos de Portugal
Nos casamentos usavão as antigas mulheres portuguezas, principalmente as da provincia do Minho, não sahirem da casa de seus paes para a de seus esposos, senão como violentadas: os seus parentes fazião a ceremonia de puxarem por ella para fóra da porta arrebatadamente, e indo no meio de dois padrinhos, adiantava-se a toda a comitiva hum moço, que levava a roca cheia de linho, e o fuso.
No tempo de João de Barros, que floreceo pelos annos de 1549, ainda permanecia quasi geral este costume; porque a noiva, quando sahia da casa de seus pais, diz elle na discripção do Minho, chorava muito, dando assim a entender saudosa, que se apartava da sua companhia contra vontade.
Tambem costumavão, quando sabião que alguma moça estava contratada para casar, juntarem-se as visinhas e parentas della, e fiarem todas á porfia huma noite até pela manhãa, a que chamavão o serão da noiva, e assim chegavão a fiar muitas varas de panno para seu enxoval. Desta sorte ajudavão huns aos outros para o dote das filhas, e no dia da boda fizião grandes festas e banquetes[2].
Depois do casamento vem o arrependimento.
[1] A.H. de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa: Aspectos da Vida Quotidiana, 1.ª edição, Lisboa, Sá da Costa, 1964, p. 129.
[2] O ARCHIVO POPULAR: SEMANARIO PINTORESCO, volume III, n.º 42, de 19 de Outubro de 1839, p. 334.